O significado do Havaí para os estudos da cultura musical do mundo de língua portuguesa manifesta-se da forma mais evidente na relevância do cavaquinho, do machete, do violão, da guitarra e instrumentos afins de cordas dedilhadas para a cultura do arquipélago polinésio-norteamericano.
A "guitarra havaiana" e, sobretudo, o ukulele são de tal forma emblemáticos para o Havaí que se transformaram em objetos procurados por turistas como lembranças de viagem, dando origem a uma indústria de instrumentos de formas das mais diversas e fantasiosas. Instrumentos com relógios, caixas de ressonância de inusuais formatos, cores, ornamentações várias e outras curiosidades oferecem sugestivas oportunidades para observações.
A projeção da cultura do Havaí, sobretudo nos Estados Unidos continental e no Japão, é estreitamente vinculada com esses instrumentos. O Havaí contribuiu e contribui, assim, de forma relevante, à difusão global de um tipo de instrumento, na diversidade de suas formas, que é de particular significado para a cultura musical portuguesa e brasileira.
Apesar de diferenças quanto à prática de execução e interpretação, conotadas como havaianas e que se manifestam em muitas expressões musicais, o visitante brasileiro ou português do Havaí se surpreende em constatar a vigência de um universo sonoro que lhe surge como familiar, com práticas, estilos e gêneros que julgava até mesmo serem característicos de sua cultura nacional e elementos co-definidores de sua identidade.
Mesmo aqueles que não possuem conhecimentos mais aprofundados de música sentem que muitas de suas convicções necessitam ser revistas e que idéias ufanisticamente defendidas exigem relativações.
O confronto com a onipresença de instrumentos de cordas dedilhadas em mercados e centros turísticos do Havaí, em particular em Honolulu, e sobretudo a multiplicidade de suas formas levam o observador naturalmente a indagar o que representa de comum e genérico nesses instrumentos, qual é a unidade que se encontra por detrás da diversidade, quais são as razões que explicam a difusão e a popularidade dessa unidade na diversidade e da diversidade na unidade.
Que essas questões não se delimitam ao Havaí, mas que também se levantam em outros contextos polinésios, isso é sugerido no stand de título "Paraphernália do ukulele" à entrada do Centro Cultural da Polinésia, em Oahu.
Mesmo o observador não especializado é assim confrontado com questões de natureza organológico-cultural, com o significado de um estudo dos instrumentos na sua inserção em processos de difusão e transformações culturais. Percebe, também, que essas questões dirigem a atenção a determinados contextos de dimensões mundiais, e sobretudo a elos entre o Atlântico e o Pacífico.
O complexo do ukulele leva o visitante português ou brasileiro a constatar surpreendentes afinidades e vínculos entre nações e esferas culturais distantes geograficamente, e sem maiores elos provenientes da história colonial, o que clama por elucidações.
Desenvolvimento dos estudos e das reflexões
Essas questões, porém, não são recentes na pesquisa da cultura musical. Em 1968, quando da fundação, em São Paulo, da entidade que hoje constitui a organização Brasil-Europa, e que correspondia à necessidade então sentida de renovação dos estudos culturais e musicais através de um direcionamento da atenção a processos, sobretudo àqueles de difusão (Sociedade Nova Difusão), questões relacionadas com o violão, a viola e instrumentos afins desempenharam papel de importância.
A consciência, já antiga, de uma necessária valorização desses instrumentos populares na vida musical de concertos e no ensino musical de conservatórios correspondia à uma concepção dirigida a esferas (erudita, popular e folclórica) e que determinava a pesquisa segundo áreas disciplinares.
A mudança de perspectivas, o direcionamento da atenção a processos possibilitava uma cooperação interdisciplinar mais estreita e mesmo a superação de barreiras disciplinares entre os estudos de folclore, da música popular e da música erudita, criando uma situação particularmente favorável para os estudos relacionados com o violão, a viola e instrumentos afins.
Essa orientação, propugnada pelo Centro de Estudos em Musicologia - predecessor do ISMPS, em estreita colaboração com o Museu de Folclore da Associação Brasileira de Folclore, foi desenvolvida quando da introdução da disciplina Etnomusicologia no sentido próprio do termo em cursos superiores de Gradução e Licenciatura da Faculdade de Música e Educação Artística do Instituto Musical de São Paulo, a partir de 1972.
Um dos trabalhos de Licenciatura então realizados sob a orientação do editor desta revista, o de Therezinha Rosa Príncipe Menduni, tratou, em 1973, da história, dos caminhos e das características da difusão e da transformação da guitarra e instrumentos afins no Brasil, com particular consideração da viola. A pesquisadora considerou, sob as novas perspectivas, obras de referência então existentes, em particular daquela de Carlos M. Santos (Tocares e Cantares da Ilha: Estudo do Folclore da Madeira, Empresa Madeirense, 1937) e Ernesto Veiga de Oliveira (Instrumentos Musicais Populares Portugueses, Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1966). Nesta última obra, esse especialista português descreve as circunstâncias da emigração do cavaquinho, do machete ou braguinha das ilhas da Madeira ao Havaí (págs. 139-145).
A atenção dirigida a estudos de imigração - então preocupação particularmente intensa nos estudos de Etnomusicologia no Brasil - levantou a questão das relações entre os instrumentos introduzidos no Brasil nos primeiros séculos da colonização - e presentes em expressões tradicionais - e aqueles trazidos pelos imigrantes, em particular das ilhas atlânticas, nos séculos XIX e XX.
Os trabalhos que deram continuidade a esse desenvolvimento brasileiro na Europa foram sobretudo dirigidos à simbologia do instrumento de cordas dedilhadas e a seu papel em processos de transformação cultural na história da cristianização, tanto na Antiguidade tardia, como na expansão do Ocidente no período dos Descobrimentos. Esses trabalhos levaram ao desenvolvimento de uma concepção musicológica de orientação antropológica e, reciprocamente, de uma antropologia cultural de direcionamento musicológico centralizada na imagem do instrumento de corda, nas suas diversas substituições e metamorfoses.
Esses estudos de fundamentos, acompanhados por levantamento de fontes e de análises de sentido de textos da Antiguidade e da Idade Média, forneceram as bases para a consideração da difusão desses instrumentos e de seus sentidos promovida pelos portugueses no decorrer de suas viagens de descobrimento e colonização.
Após trabalhos realizados na Madeira, em 1987/88, questões relacionadas com a difusão de instrumentos em processos migratórios, tanto através imigrantes madeirenses no Brasil, como portugueses na Europa Central foram retomadas no âmbito de colóquio internacional de estudos culturais realizado na Alemanha, em 1989, pelo Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS), pelo Instituto de Estudos do Folclore da Universidade de São Paulo, por várias instituições de ensino superior do Brasil e por representantes da comunidade madeirense de Santos.
Alberto Ikeda salientou, nesse contexto, que o cavaquinho, apesar de sua origem portuguesa, tornou-se tão identificado com a música brasileira que passou a ser visto em vários países como a sua "alma", um fenômeno que teria despertado novo interesse pelo instrumento e sua música no próprio Brasil (A. Ikeda, "Weine Cavaco, Klage Cavaquinho!!!", Musices Aptatio 1989/90, Colonia 1996, 196-202).
Do desenvolvimento posterior dos estudos, cumpre salientar o Colóquio "Dimensões européias da música portuguesa", realizada em 2002 pelo ISMPS e.V. por motivo da escolha do Porto como capital européia da cultura, aberta por uma conferência-exposição de Rolf Bäcker sobre a questão do papel emblemático da guitarra na cultura de Portugal.
Em cursos e seminários dedicados à história da música em contextos globais, à "world music" e à música do Pacífico, assim como no âmbito do programa dedicado às relações entre processos transatlânticos, interamericanos e transpacíficos da Academia Brasil-Europa, percebeu-se cada vez mais a necessidade de uma mudança de perspectivas no tratamento do tema.
O fenômeno do ukelele havaiano continuava a ser considerado por demais como uma curiosidade em estudos ainda orientados por enfoques predominantemente portugueses ou brasileiros. A relevância do papel do Havaí na difusão do instrumento e no papel que passou a desempenhar sobretudo na música popular internacional exige uma consideração mais aprofundada do desenvolvimento ocorrido no próprio arquipélago.
Justamente por não estar inserido no contexto colonial luso-brasileiro, esse desenvolvimento pode abrir perspectivas para o aprofundamento de estudos organológicos gerais e do papel desses instrumentos em mecanismos de transformação cultural, com consequências para a própria pesquisa no Brasil e em Portugal.
A guitarra e instrumentos afins na história cultural do Havaí
Os havaianos tomaram contato com a guitarra e instrumentos similares com os europeus vindos nos navios que ali chegaram. Tem-se indícios de ter sido largamente utilizada por marinheiros inglêses, pela facilidade do transporte e de sua execução no espaço exíguo dos navios, e por ser instrumento acompanhador divulgado na Grã-Bretanha. Com a guitarra ter-se-ia, assim, divulgado um repertório de árias, canções populares e, sobretudo, de baladas tradicionais do Reino Unido nos povos contatatos na Polinésia.
A difusão da guitarra e instrumentos similares também foi promovida pela ação de missionários, sobretudo norte-americanos. Pela ausência de órgãos no início da história missionária, o instrumento oferecia-se para acompanhar cantos religiosos em assembléias ao ar livre e em encontros domésticos.
A intensa prática de hinos, apoiados por acompanhamento de instrumentos do tipo da guitarra fomentou não apenas uma tendência ao predomínio da melodia na cultura musical segundo modêlos dos cantos evangélicos norte-americanos da época, mas sim também assimilação de correspondentes configurações harmônicas. Como instrumentos de fácil transporte foram também empregados por missionários nas suas andanças pelas ilhas no sentido de atrair e ganhar a simpatia dos nativos. Nessas ocasiões, e em horas livres, também no âmbito familiar dos próprios missionários, o instrumento foi usado para o acompanhamento de canções tradicionais, sobretudo baladas, conhecidas das regiões de proveniência dos norte-americanos. Práticas e repertórios tradicionais, em grande parte de origem britânica e cultivados na América do Norte, sobretudo nas regiões rurais, passaram a ser assimilados no Havaí.
A popularidade da guitarra e instrumentos similares foi sobretudo acentuada com a vinda de vaqueiros mexicanos em meados do século XIX (paleolos). Trazidos com o objetivo de apoiar os nativos a lidar com as reses introduzidas nas ilhas, esses mexicanos trouxeram consigo o instrumento, popular no México, também aqui sobretudo nas zonas rurais. Com êle, os peões trouxeram um repertório tradicional que explicaria uma tendência do Havaí a expressões da cultura rural ibérica e íbero-americana e que teria a sua expressão posterior no significado da "country music" havaiana.
Um outro fator que deve ser considerado na história dos instrumentos de corda dedilhados do Havai é o papel desempenhado pelos minstrels. Nesses grupos, populares nos Estados Unidos, nos quais africanos e afro-americanos eram representados de forma grotesca, trágico-cômica e de amarga hilariedade, o banjo desempenhou significativo papel como atributo e sinal. O instrumento de corda dedilhada surgia, aqui, com conotações africanas e afro-americanas.
Braguinha, machete, cavaquinho
Uma nova e importante fase na história organológica do Havaí deu-se com a chegada dos imigrantes portugueses provenientes das ilhas atlânticas. O início desse novo desenvolvimento é relativamente bem documentado e tem sido considerado pelos pesquisadores. Tem-se salientado que, entre os 419 imigrantes contratados para o trabalho em plantações de açúcar do Havaí, trazidos pela nave Ravenscrag, em viagem de quatro meses e 22 dias pela rota do Cabo Horn, contornando a América do Sul, encontravam-se hábeis artesãos, Manuel Nunes, Augusto Dias e José do Espírito Santo, que se distinguiriam na construção de instrumentos, e dois músicos, João Fernandes (*1854), executante de machete, viola e rajão, e José Luis Correa. Durante a viagem, João Fernandes entretera os viajantes com uma braguinha pertencente a João Soares da Silva.
Ao desembarcar em Honolulu, a 23 de Agosto de 1879, João Fernandes levava à mão o braguinha. Segundo o que se relata, os havaianos teriam ficado fascinados com o instrumento e sua prática de execução, denominando-o de ukelele, termo que tem sido interpretado pelo fato dos havaianos associarem a sua técnica e a sua sonoridade com uma "pulga saltitante".
João Fernandes passou a apresentar-se em danças, festas e serenatas (Veja artigo nesta edição), formando posteriormente um conjunto com Augusto Dias e João Correia.
Momento importante na atividade musical desses imigrantes foi a apresentação que realizaram para rei Kalakaua (1836-1891), por ocasião da festa do seu aniversário, tendo sido ouvidos pelas rainhas Emma (1836-1885) e Liliuokalani (1838-1917) no palácio de Ilakla e no pavilhão de verão do palácio Iolani. Sancionado pelo rei, o instrumento passou a acompanhar apresentações de hula, tornando-se popular em Honolulu. (Veja artigo sobre Kalakaua nesta edição)
Já nesse seu início a história da difusão do ukelele é marcada, como hoje, pela sua comercialização. Manuel Nunes, que abriu uma casa de móveis na King Street, passou a construir instrumentos, então vendidos por apenas 5 dólares. Esses eram executados por João Fernandes, atraindo compradores à porta da oficina. Essa atividade de Manuel Nunes tem sido documentada desde 1884.
Nessa época, também Augusto Dias abriu uma loja de fabricação e venda de ukeleles. Em 1889, foi seguido nessa atividade por José do Espírito Santo. Esses três músicos - Manuel Nunes, Augusto Dias e José do Espírito Santo utilizaram-se também de madeiras locais para a produção de instrumentos (kou e koa)
Tem-se salientado que a história da emigração do braguinha não pode ser entendida sem a consideração do seu significado e de sua difusão na própria Madeira. O próprio Manuel Nunes pode ter pertencido a família de violeiros madeirenses, uma vez que se conhece o nome de Octaviano João Nunes como dos mais destacados construtores de instrumentos da ilha, autor de um braguinha oferecido à imperatriz Elisabeth da Áustria (1837-1898) (hoje no Museu de Viena). O seu sobrinho, João Nunes, cognominado de "Diabinho", foi também destacado violeiro.
O contexto havaiano é, porém, o que merece particular atenção. Do ponto de vista histórico-social, surge como singular a função desempenhada pelo instrumento na integração de imigrantes portugueses em contexto cultural estranho, de outra língua, favorecendo que se estabelecessem como artistas, artesãos e negociantes independentes em zonas urbanas.
Esse desenvolvimento apenas tornou-se possível devido à existência de pressupostos culturais favoráveis e da atmosfera da época de Kalakaua, marcada ao mesmo tempo por abertura a novidades, a desenvolvimentos técnicos e por um interesse por valores culturais populares e tradicionais.
Sob esses dois aspectos, - inovação e tradição -, é que a aceitação e o sucesso do ukelele devem ser considerados. O pequeno instrumento dos imigrantes do Atlântico foi bem visto como uma novidade para uma sociedade aberta à assimilação de impulsos externos, impressionando-a pelas suas características técnicas que permitiam execuções marcadas pela rapidez, leveza, clareza e bom humor de "pulga saltitante". O fator mais significativo, porém, foi o de ter vindo de encontro a tendências de revalorização de expressões tradicionais da cultura havaiana em época marcada por apogeu e crise da monarquia (Veja texto sobre Kalakaua, nesta edição).
Questões de designação
Neste contexto, cumpre dar maior atenção à denominação do instrumento, não se devendo aqui confundir a impressão "de pulga saltitante" de sua execução e interpretação com o sentido de sua designação.
Questões de origem e significado dos nomes do instrumento não dizem respeito apenas à sua recepção no Havaí, mas também se levantam no contexto português. Se o machete de braga ou braguinha da Madeira tem a sua denominação ou mesmo proveniência de Braga, no Minho, é uma questão a ser discutida, uma vez que há autores madeirenses que o reclamam para a ilha. A denominação poderia derivar-se ou de roupa utilizada pelos camponeses e denominada de braga ou do fato de ser utilizado sobre a cintura, antigamente denominada de cinta ou braguilha. Opinião crítica a respeito dessas hipóteses foi formulada há muito pelo Pe. Fernando Augusto da Silva e Carlos Azevedo de Meneses (Elucidário Madeirense I, Funchal 1984, Fac-símile da edição de 1946, 167-168).
Não se pode deixar de considerar, quanto ao nome de ukelele, que à época da chegada dos imigrantes portugueses a reconscientização das tradições culturais do Havaí levara a uma valorização do ukeke, o único instrumento de cordas dedilhadas da tradição havaiana anterior à chegada dos europeus. Esse instrumento, em cuja execução a bôca do instrumentista funcionava como caixa de ressonância, identificado pelos europeus com a jews harp (berimbau de bôca), possuia função e sentidos relacionados com a transmissão de mensagens de amor. O próprio instrumentista transformava-se, assim, metaforicamente, em instrumento vibrante.
Essa interpretação simbólico-antropológica do instrumento e, vice-versa, do homem como instrumento refletiu-se na denominação de uma personalidade havaiana que desempenhou importante papel na revitalização da hula, cognominado de 'Ioane Ukeke. Nessa função e nesse sentido, o instrumento passou a ser substituído por outros instrumentos de corda dedilhados em geral, correspondendo, aqui, a uma simbologia também conhecida da tradição européia relativamente à guitarra e instrumentos afins. (Veja artigo a respeito da hula nesta edição)
Nesse sentido, tem-se dado atenção insuficiente à figura de Augusto Dias, que foi aquele que despertou maior atenção do rei Kalakaua e, com isso, abriu caminhos para a introdução do instrumento no acompanhamento da hula. Seria significativo, aqui, analisar mais pormenorizadamente a sua ação a partir de características de sua personalidade em ambiente marcado pelo "Dandyismo". (Veja artigo a respeito)
O fascínio que o instrumento dos portugueses despertou nos havaianos pode ser considerado também sob a perspectiva de gênero. Como instrumento pequeno, leve e gracioso, teve conotações femininas, sendo executado por mulheres, também na Europa. Poder-se-ia compreender aqui a particular receptividade dos havaianos para com esse instrumento considerando-se o papel da mulher e da prática musical feminina nos círculos elevados da sociedade. (Veja outros artigos nesta edição) Assim, vê-se o instrumento em antigas fotografias em mãos - ou na cintura - de mulheres em acompanhamentos de hula.
Um outro fator que pode ter favorecido a recepção do instrumento português no Havaí diz respeito à sua difusão na esfera inglêsa. Uma Côrte que se orientava sobretudo por tendências culturais britânicas e cujos representantes haviam realizado viagens por diversos países da Europa teria tido contato anterior com a existência do instrumento. Inglêses que visitavam a Madeira, por motivos comerciais e de veraneio, ali conheceram o instrumento, que podiam aprender a tocar com musicistas locais, entre outros com Manuel Cabral, Antonio José Barbosa e Agostinho Martins. Este último chegou a organizar uma orquestra composta de braguinhas, rajões e violas, o que correspondeu a um fascínio por conjuntos de cordas dedilhadas, com ou sem outros instrumentos, constatado em várias regiões do mundo na segunda metade do século XIX (Pe. Fernando Augusto da Silva e Carlos Azevedo de Meneses, op.cit.167-168).
Segundo essa perspectiva, a difusão do instrumento português no âmbito de contextos culturais de língua inglêsa não se teria iniciado no Havaí. Explicaria a sua presença em Trinidad e outras ilhas do Caribe, e, talvez, em Hong Kong. Também neste último caso tem-se o relacionamento de tendências britânicas com aquelas provenientes do contexto português de Macau no cultivo de instrumentos de corda dedilhadas portuguesas.
Situação após a queda da monarquia e difusão nos Estados Unidos
O ukelele, inserindo-se em época marcada pelos intuitos de valorização de uma "cultura do coração" e da "alma" à época de Kalakaua, foi instrumento que se integrou e pertenceu ao Havaí autônomo da época da monarquia. Perdido o apoio dos círculos que valorizavam as expressões tradicionais populares - ainda que transformadas -, com a queda da monarquia (1893) e, sobretudo, com a anexação aos Estados Unidos, o instrumento parece ter decaído socialmente, passando, porém, a ser considerado como expressão popular tradicional.
A sua difusão nos Estados Unidos ocorreu à época da Primeira Guerra Mundial. Ao redor de 1914, um editor de Los Angeles, R. W. Hefflefinger, anunciava um método de ukelele ou guitarra havaiana e taro-patch. Em 1915, na Exposição Panamá-Pacífico de São Francisco, o já então território norte-americano, representado em pavilhão, foi apresentado com música para conjunto de cordas dedilhadas. Esse passo tem sido visto como decisivo na popularização da música havaiana nos Estados Unidos.
Já em 1916, a venda de discos de música havaiana alcançava posição destacada no comércio musical americano. Esse sucesso tem sido considerado por alguns autores como o primeiro fenômeno de uma música globalizada, superando nesse sentido talvez até mesmo o da difusão do tango e do maxixe.
Transformações de práticas de execução e estilos
O ukelele surge como de particular relevância para análises de transformações organológicas nos seus elos com transformações culturais e para estudos musicais inter-e transculturais em geral.
O instrumento português, originalmente com cordas de tripa, apresentava possibilidades de modificações quanto a pontos e afinação. A substituição de cordas de tripa por de metal, que seria de importância no desenvolvimento do instrumento no Havaí, já teria ocorrido na Madeira, onde a prima de tripa é substituída por uma corda de metal, o que produz um som mais ácido e de maior volume.
Era particularmente adequado à execução de melodias, às vezes acompanhados pelo rajão e viola. Como parte de grupos musicais populares, desempenhava a parte cantante, às vezes em uníssono com outros instrumentos, como guitarra e rabeca. Na produção do som, o executante popular servia-se apenas do polegar. Um tocador mais hábil podia ao mesmo tempo entremear a melodia com acordes de três e quatro notas produzidas pelos outros dedos. No tocar a ponteado a melodia era realizada utilizando-se a maior parte dos tastos ou pontos.
Um de seus aspectos mais considerados diz respeito ao slack key ou estilo ki ho'alu. A slack key guitar, que passou a ser considerada como peculiar ao Havaí, derivou-se de prática de reafinação, com um afrouxamento das cordas. Dessa forma, facilitava-se o acompanhamento de cantos que exigem até três acordes, como blues.
Desenvolveram-se dois modos de execução, uma delas envolve a fricção das cordas com uma peça de metal, a técnica da steel-guitar. A outra, a da chave frouxa, envolve o pontear das cordas com o polegar, com a qual se produz um baixo constante, enquanto os outros dedos executam a melodia.
Tem-se salientado que a inovação do slack key foi devida a um estudante, Joseph Kekuku, da ilha Oahu, que teria constatado que, friccionando uma peça de metal na corda após tê-la tocado podia produzir um efeito especial. Esse desenvolvimento teria ocorrido paralelamente ao uso do inglês norte-americano em textos com música considerada como tradicional havaiana (estilo hapoa haole ou half white).
A steel guitar" tocada horizontalmente, na qual pressiona-se o steel rod nas cordas com a mão esquerda para a produção do efeito, precedeu o desenvolvimento que teria continuidade com a guitarra elétrica. Assim, a primeira guitarra elétrica, designada como frying pan foi uma steel guitar havaiana (1931).
O desenvolvimento da steel guitar deve ser considerado no contexto das transformações culturais do Havaí após a sua anexação aos Estados Unidos e ao fomento turístico-comercial de interesses pela música conotada como havaiana.
Assim, um dos mais conhecidos nomes da música havaiana do século XX, o de Bennie Nawahi, cognominado nos anos 20 de "Rei do Ukelele", distinguia-se pela execução do instrumento em navios cruzeiros, onde, para o divertimento dos passageiros, realizava as suas apresentações com acrobacias, tocando o instrumento com os pés ou o colocando por detrás da nuca. Nos seus primeiros anos, atuou juntamente com Sol Ho'opii, músico conhecido por tentar relacionar o jazz com a música tradicional havaiana. Desenvolveu, já no início de sua carreira, a pedal steel guitar e a country music/Nashville.
Guitarra havaiana na Europa
No decorrer dos anos 30, o fascínio pela música havaiana alcançou vários países europeus. Em Londres, alcançou popularidade o Felix Mendelssohn Hawaiian Serenaders, executando uma mistura de música tradicional, hapa haole, jazz e canções populares. (Veja artigo sobre a tradição da Serenata no Havaí, nesta edição)
Após a Segunda Guerra Mundial, com o papel predominante dos Estados Unidos na nova configuração política e político-cultural, a guitarra havaiana vivenciou uma nova fase de difusão e popularização. Também aqui o recrudescimento do interesse pela música do Havai foi estreitamente relacionado com o desenvolvimento do turismo comercial. Conjuntos havaianos passaram a constituir atrações de viagens turísticas e promovidos por agências.
Revitalização do instrumento no Havaí
Um fenômeno que mereceria ser mais pormenorizadamente considerado foi o da perda de interesse pelo steel guitar no próprio Havaí, acompanhada por uma orientação dos músicos segundo novas tendências da música popular internacional.
Uma revitalização ocorreu em fins dos anos sessenta e no início da década de 70, quando também no Havaí despontaram movimentos de conscientização política, acompanhado por reflexões a respeito da situação do arquipélago como Estado anexado aos Estados Unidos e por intentos de revitalização da própria cultura.
Nesse contexto, o emprêgo da língua nativa em textos e o slack-key guitar experimentaram um ressurgimento. Um dos principais nomes desses esforços é o de Gabby Pahinui. A sua Pahinui Brothers Band caracterizou-se com um estilo musical que apresenta elementos de soul, country, reggae e slack-key music. Sonny Chillingworth, também instrumentista de guitarra slack-key, apresenta outras influências, inclusive do fado português.
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